domingo, 13 de março de 2011

A vingança em Casablanca


O sangue de Ludwig vibrava em suas veias todas as vezes em que ouvia as suntuosas composições de seu mais ilustre xará. Para ele, as canções de Beethoven representavam certa passagem para um estranho e magnífico mundo, onde certas leis, como as de tempo e as de espaço, não vigoravam.  Naquele dia, assim como na maioria dos anteriores, Ludwig isolou-se no único cômodo da imensa mansão onde havia um toca-discos, o que fazia daquela sala o seu local preferido da casa. Nas paredes, enfeitando de forma peculiar o ambiente, haviam penduradas cabeças de animais empalhados, todas fruto das temporadas de caça, das quais Ludwig participava, quando ainda não estava paralisado na cadeira de rodas. Quando o vinil começou a girar, a mente do velho taxidermista começou a girar também. Estava ansioso para ver e sentir as surpresas que aquele mundo sem leis lhe reservara aquele dia. 

Enquanto iniciavam-se os primeiros compassos da Nona Sinfonia, ele era transportado para algum lugar longe dali. Sentia o vento em seu rosto. Estava em uma praia. Aos poucos, reconhecia o lugar. Uma praia na distante Sicília, palco de sua infância, à qual Ludwig retornara naquele momento. Ele voltara a ser um menino de sete anos de idade. Ele e mais três amigos, mais ou menos da mesma idade, esperavam Saraghina, conhecida prostituta da região que vivia em um pequeno casebre nas areias de Siculiana Marina. A mulher mostrava seu corpo a quem pagasse. Inclusive garotos de sete anos de idade. Clarinetes. Ludwig viu Saraghina aproximando-se, com o olhar fixo nele. O olhar mais lindo e mais triste que Ludwig já vira em sua vida. Timbales. O medo de ser descoberto e a curiosidade, que só as mulheres despertam nos homens, eram evidentes nos olhos do menino, que segurava o bolo de moedas nas mãos. Violinos. Os excitantes violinos. Saraghina agora estava em sua frente, encarando-o com um discreto sorriso no canto da boca. Os assustados olhos de Ludwig encontraram os olhos tristes dela. Tristes. Muito tristes. Olhos nos olhos, não existia mais nada em volta. Silêncio. Subitamente, o mar evaporou-se, a areia sumiu, os instrumentos calaram-se. A bela mulher sumiu no vazio.  Ludwig, aos poucos, aterrissava nesse planeta e percebia que o vinil fora retirado do toca-discos.

Mesmo sem saber o que acontecera ali, ele sorriu. Ficara feliz pelo fato de tantos anos não terem apagado de sua memória o corpo lindo e sujo de Saraghina. Ele só percebeu a presença de Shosanna na sala, quando a mesma tocou seu rosto, perguntando-lhe se estava tudo bem e oferecendo-lhe um convite para ir dormir e um copo de leite. Ludwig pensou em reclamar pelo fato de ela ter desligado a música, mas realmente estava cansado. Aceitou o copo de leite. Bebeu. Porém, não teve mais tempo para dizer que também aceitara o convite para ir dormir. Sentiu fortes dores no peito. Derrubou o copo no chão. Conseguiu apenas dar um grito de dor. Depois de 88 anos de uma vida cheia de alegrias extremas e decepções profundas, Ludwig chegou à sua definição final: morto.

Shosanna. Todos naquela pequena cidade do interior da Alemanha já tinham levantado alguma hipótese sobre aquela moça. De onde ela tinha vindo ou o que ela realmente queria com o velho Ludwig. Depois de casarem-se, ele quase não saia mais de sua mansão. Nem ela, o que despertou a curiosidade da maioria dos moradores. Na verdade, Shosanna era uma francesa, que fora expulsa de casa aos 18 anos por ter engravidado de seu cunhado, marido de sua irmã mais velha. Dois anos depois, ela e seu pequeno filho, Frederich, foram parar naquela cidadezinha da Alemanha. Lá, conheceram um italiano milionário, paraplégico e solitário, ao qual ninguém dava mais de um ano de vida. Shosanna viu naquele homem uma bela oportunidade de reconstruir a sua vida e dar um futuro digno ao seu filho. 

O homem a aceitou. O homem aceitou o seu filho. O homem deu àquela mulher uma nova vida, de rainha. O único problema para Shosanna é que o velho durou mais do que ela esperava. Sua intenção era esperar ele morrer, pegar a herança e sair daquele fim de mundo. Ela não agüentava mais as manias dele, os comentários maldosos dos vizinhos miseráveis. E as músicas horríveis. Que péssimo gosto musical o velho tinha. Isolara ele do resto do mundo, permitindo poucas saídas da mansão. Não lhe dava muito carinho, apenas o suficiente para manter as aparências. Tinha amantes. Muitos. Porém, cansou-se. Naquela noite Shosanna tomara uma decisão: matá-lo. Em poucos minutos elaborou todo o plano que seria concretizado minutos depois, com um copo de leite envenenado. Observando Ludwig agonizar, ela sentiu um pequeno remorso. Mas agora era tarde. Esperou o veneno terminar o seu trabalho naquele velho corpo e partiu para a segunda parte do plano.

Adelle. Negra e judia, aos 57 anos de idade podia se considerar uma mulher de sorte. Naquele ano, 1944, os negros e judeus estavam sendo perseguidos pelos nazistas, no auge da Segunda Guerra Mundial. Ela, graças à bondade e ideais não patriotas de um italiano, trabalhava como empregada na mansão dele, em plena Alemanha. Apesar de ter um péssimo relacionamento com a esposa do homem, ali ela conseguia esconderijo para ela e para seu filho, Tony. Porém, a sorte de Adelle mudou na noite em que seu bondoso patrão morreu. Ela sabia que a esposa dele tinha alguma ligação com seu falecimento, o que foi comprovado pela constatação de veneno no corpo de Ludwig, através de uma autópsia pedida por Shossana, que pensara em tudo. Para que ninguém levantasse suspeitas a seu respeito, denunciou Adelle e Tony às autoridades e culpou a judia pela morte do marido. Não houve investigação alguma. Uma assassina judia era tudo do que as autoridades alemãs gostavam. Ela foi presa. Tony conseguiu fugir. Shosanna ficou com toda a herança de Ludwig.

Tony. Jovem de vinte e dois anos de idade, era judeu, portanto não podia trabalhar na Alemanha nazista e vivera até agora graças ao bom coração de Ludwig. Apesar de muito insistir, nunca convencera Adelle a irem embora daquele país. Vendo sua mãe sendo presa, Tony conseguira se esconder em um casebre abandonado no meio de uma densa floresta. Sabia de tudo. Sabia tudo que Shosanna fizera à sua mãe. Sabia que queria vingança. E iria atrás dela até o fim. Tony não tinha informações sobre Adelle, mas sabia que era bastante previsível o destino de sua mãe em um campo de concentração. O rapaz não comia e nem bebia. Apenas alimentava o seu desejo de vingança, que crescia com uma rapidez assustadora. Shosanna. Enforcada. Sangrando. Morrendo. Agonizando. Como aquelas cenas que a mente de Tony criava eram lindas para ele. Foi aí que, por coincidência ou destino, ele lembrou de certo evento que ocorreria na cidade na noite seguinte. Era o momento certo. Então, pela primeira vez em todos aqueles dias em que estava ali, ele percebeu que, no canto do casebre, havia um machado. Olhou fixamente para o instrumento, que parecia sorrir para ele. Tony apenas sorriu de volta.

Estava chovendo. Shosanna deixara seu filho com a babá e saira para a inauguração oficial do cinema da cidade. Como ainda não partira dali, tinha obrigação de comparecer ao evento, sendo agora uma das pessoas mais ricas e importantes da região. Apesar de dividir opiniões entre os alemães, o filme a ser exibido na estréia era Casablanca, vencedor do Oscar de melhor filme daquele ano. Para ela, foi reservado o lugar de honra.

As primeiras pessoas a verem Tony andando, transtornado, com um machado na mão, se assustaram e saíram correndo. Enquanto ele se aproximava da entrada do cinema, alguns tentaram o impedir. Quase foram acertados pelas machadadas do rapaz, que agora era um animal furioso. Dentro do cinema, Humphrey Bogart eternizava seu estilo na tela. Tony caminhava rapidamente em direção à porta do cinema. Ingrid Bergman inundava a grande tela com sua beleza enigmática e talento gigantesco. O rapaz agora entrara no cinema e dirigia-se para frente dos assentos. Ali parou. Ficou pouco tempo parado, apenas até achar o assento que lhe interessava: o de honra. Agora com euforia em seus olhos, Tony e seu machado foram parar na frente da assassina. Ali, cara a cara, os dois sabiam o que iria acontecer em seguida. Ela não queria morrer, mas sabia que aquele homem teria sua vingança. Ele não queria matar uma pessoa, mas sabia que devia atender ao seu instinto animal. Não trocaram nenhuma palavra. Shosanna foi morta com treze machadadas, a maioria na cabeça. Tudo isso ao som da mais bela canção já composta para um filme: “As Time Goes By”.

As pessoas próximas dali se incomodaram um pouco apenas com o barulho feito por Tony enquanto deferia os golpes. Em um assento vazio, curiosamente bem ao lado do corpo da mulher, ele sentou-se, coberto de sangue. Concentrou-se apenas no filme. Esqueceu a provável morte de sua mãe e tudo o que iria lhe acontecer também. Agora só existia Casablanca.  Rick e Ilsa. Tony pensou em como era lindo o poder da sétima arte, de nos proporcionar uma história como a daquele casal. Em meio a tantos pensamentos e devaneios, ele ouvia Beethoven. Bem baixinho. Não sabia de onde vinha a música, mas ouvia. Não entendia o porquê. E aquilo não lhe incomodava. Sentado naquela sala de cinema, ele chorou, sorriu, sentiu emoções como nunca antes. Suas percepções estavam mais aguçadas do que nunca. Ele adorou cada fragmento do filme, mas não viu Ilsa entrar no avião e deixar Rick naquele aeroporto, com as lembranças de Paris e nada mais. Não agüentou ficar até o final. O cheiro do cadáver ao seu lado ficara muito forte.

3 comentários:

  1. Nossa fazia tempo que eu não lia um texto tão lindo e triste ao mesmo tempo. Tu consegue passar para o leitor todos os sentimentos dos personagens, desde a nostalgia do velho Ludwig ao lembrar de sua infância, até a raiva e sede de vingança do jovem Tony! Parabéns Jean! ;D

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  2. Oi, Bobsin, como vai? Gostei do seu blog, estou seguindo, confesso que não li a postagem inteira, porque realmente o tempo para a leitura está escasso para mim, mas assim que eu tiver lido todo eu volto e comento aqui, ok?
    beijo ;*

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  3. Noossa ! Que texto incrível! Eu realmente adorei cada detalhe, é um texto extremamente bem feito! Que talento para escrever contos que você tem! E o melhor de tudo é que você consegue fazer com que sintamos toda a carga emocional do texto, incrível mesmo! Percebo que não irei me arrepender de seguir o seu blog! Parabéns, você tem talento! :D
    Beijo ;*

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